Para a professora e pesquisadora da
FGV, Sônia Fleury, a ideia de integração entre o público e o privado se
traduz em um sistema público que virará um financiador da área privada
Sônia Maria Teixeira Fleury: Doutora em Ciência Política, mestre em Sociologia e bacharel em Psicologia
Se as
eleições fossem hoje e os candidatos do setor de saúde estivessem
divididos entre Público e Privado, o voto da professora titular da
Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da
Fundação Getúlio Vargas, Sônia Maria Teixeira Fleury, provavelmente
seria na primeira opção. “O que está acontecendo é uma terceirização
geral não só da função gerencial, mas também da atenção, que é precípua
do setor público”, afirma sobre a participação da iniciativa privada nas
modalidades de PPP. Psicóloga de formação, Sônia teve sua trajetória
marcada pela política e sociologia na área da saúde. Participou da
Reforma Sanitária e passou pela Fiocruz. Sônia, conversou com a FH, por
telefone de sua casa no Rio de Janeiro. Veja os principais trechos a
seguir.
Revista FH: Estamos em ano de eleições municipais e Saúde é
apontada pelos eleitores como um dos principais problemas em muitas
cidades. Por outro lado, as campanhas atendem o pedido explorando ao
máximo o assunto. Como você analisa a responsabilidade do cidadão nesse
contexto?
Sônia Fleury: Não falta participação da cidadania demandando.
Acho que falta, por exemplo, possibilidade dela ser mais efetiva nas
unidades de saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) tentou a participação,
mas no nível do sistema e, não, nas unidades. No máximo há uma
ouvidoria ou assistente social e nada mais para que a pessoa faça valer
sua vontade, as pessoas poderiam ter algum tipo de controle, isso
poderia ser introduzido. Ademais, uma fiscalização maior também dos
próprios conselhos em relação ao que está sendo feito e aos gastos com
saúde, porque eles são poucos transparentes e pouco acompanhados pela
população.
FH: Então, nesse caso, você acha que deveria ter mais ouvidorias dentro das unidades básicas de saúde?
Sônia: Sim, se elas tivessem algum tipo de poder. Acho que as
ouvidorias poderiam estar ligadas ao próprio sistema de promotorias para
que elas tivessem efeito, porque só fazer uma reclamação na ouvidoria e
não ter resultado também não adianta. É possível ter conselhos de
moradores e profissionais que participem do controle social dentro das
unidades, e não só nos níveis municipal, estadual e federal.
FH: Uma das pesquisas que você coordenou é justamente sobre a
inovação na gestão de saúde na esfera municipal. Onde o gestor de saúde
de hoje pode inovar?
Sônia: A pesquisa compara, no período de 10 anos, o processo de
descentralização e inovação em três dimensões: social, que envolve a
inovação com a sociedade, a gerencial e também a assistencial. Na
primeira pesquisa, os resultados mostravam grande diferença entre estas
três curvas. Havia muito mais inovação social- isto foi até um
pré-requisito para a descentralização do SUS, ou seja, criação de
conselhos e de algum tipo de participação e prestação de contas junto à
sociedade- e havia menos inovação gerencial e menos ainda assistencial.
Depois de 10 anos houve uma mudança e na área assistencial ocorreram
muitos incentivos do governo com o Programa Saúde da Família, Saúde
Bucal, entre outros. Estas inovações foram disseminadas no Brasil
inteiro em nível municipal. Portanto, hoje, a questão mais séria é a
gerencial. É a que aparece como a menos inovadora e entra como o maior
problema.
FH: Como você acha que os gestores poderiam mudar essa situação? Isso depende deles ou de alguma política de nível federal?
Sônia: As duas outras dimensões, assistencial e social foram
induzidas pelo poder central. Acho que a área gerencial mereceria o
mesmo esforço. O que vemos, claramente, quando analisamos o perfil dos
mais inovadores, e isso é mais do que orientação política ou este tipo
de coisa, é que os mais inovadores, no geral, fizeram cursos específicos
para administrar e gerir. Portanto, a difusão massiva de educação
gerencial poderia ser feito por meio do próprio ministério. Acho que um
convênio com outras áreas é possível. Da mesma forma que se fez um
esforço massivo para incentivar programas como o PSF, que deram
resultados, também deveria se fazer para a qualificação da gestão na
área de saúde. Acho que é possível e deve ser feito tanto pelo próprio
gestor quanto pela indução do nível regional ou central.
FH: Entre os mecanismos de controle social estão os Conselhos
Municipais de Saúde. Como você avalia o trabalho desses conselhos?
Sônia: Os conselhos são para a gestão do sistema municipal e
não para o serviço. Acho que deveriam existir as duas coisas, pois esses
conselhos não têm capilaridade. Se eles existissem nos locais de
atenção, poderiam receber mais informações, não só em relação ao
sistema, mas também em relação às unidades. Acredito que os conselhos
têm tido papel importante, principalmente em lugares onde há uma
sociedade civil mais organizada, com mais consciência e capacidade de
exercer a função de controle social. Claro que o Brasil tem diferenças
enormes e há uma diversidade muito grande. O que se mostrou é que parte
dos conselhos aprovou as contas dos orçamentos estaduais enquanto muito
dos Estados não cumpriam o percentual legal da sua contribuição, então
isso mostra que ele não tem cumprido plenamente as suas funções, apesar
de serem interlocutores importantes da sociedade. Mas, muitas vezes, a
própria autoridade governamental passa por cima do conselho, um exemplo é
a tensão que está ocorrendo no Mato Grosso, em relação à contratação de
OSS. O Conselho Estadual é contra e definiu uma norma contrária, mas o
Executivo foi adiante. Portanto, nas decisões mais importantes, os
governantes não querem passá-las pelo conselho.
FH: Na sua opinião, o que tem, de fato, avançado na Saúde,
na esfera Municipal? No projeto de municipalizar o SUS e levar mais
acesso à saúde?
Sônia: A municipalização avançou tanto em termos de qualificar
gestores no Brasil inteiro quanto em difundir os programas e aumentar a
cobertura e a atenção à saúde, mas acho que existem estrangulamentos
enormes tanto na área de gestão quanto na de financiamento. Houve um
recuo muito grande de financiamento por parte da União, e os estados
burlaram a lei até quando puderam, incluindo gastos que não eram de
saúde no percentual previsto por lei. Pois só agora tivemos uma
regulamentação mais rigorosa (Emenda 29), que determina, claramente, o
que é considerado gasto com saúde. Qualquer dado ou estatística mostra
que cresceu a participação do município no financiamento público à saúde
em relação aos outros dois níveis. Isso porque o problema ‘bate na
porta’ do gestor municipal, inclusive com a judicialização.
FH: Você atuou no projeto da Reforma Sanitária Brasileira, que resultou
no SUS. Mais de 20 anos depois, na sua opinião, quais são os entraves
que impedem a universalização não só do sistema, mas também do acesso?
Sônia: O investimento para ter uma rede homogênea espalhada
pelo município é fundamental para permitir esse acesso. E nós tivemos e
ainda temos muitos problemas de investimento. Mas há, claro, problemas
de gestão do sistema, como aumentar a produtividade e, fundamentalmente,
voltar a ter uma perspectiva de carreira pública e introduzir elementos
inovadores de gestão sem precisar privatizá-la. É possível ter metas,
cobrar e remunerar diferencialmente pelo que for cumprido no próprio
setor público. Na minha opinião, o que está acontecendo é que há uma
perspectiva por parte dos gestores de abandonar o setor público, como se
exercer a função da saúde pública fosse problema, pois se acha que,
comprando do setor privado, se eliminam os problemas de licitações,
funcionalismo público e se pode fazer uma gestão mais eficiente. É
possível fazer uma gestão mais eficiente dentro do setor público. Acho
que um dos problemas do SUS é o abandono da gestão pública.
FH: Então, você acha que os gestores com as PPPs e OSS tendem muito a
resolver os problemas via iniciativa privada, sendo que esse problema
pode ser resolvido dentro do sistema público, com mecanismos da gestão
pública?
Sônia: Mecanismos de gestão que incorporem elementos modernos.
Por exemplo, um contrato de gestão com base em metas não precisa ser um
acordo com o setor privado. Pode-se fazer isso entre entes públicos,
contratando o hospital ou posto de saúde com metas e repassar recursos
com base nisso. Mas por que só fazer isso com o setor privado e com
elementos mais modernos de gestão e de certa forma abandonar a gestão
pública, sem melhorar os salários, a carreira e a cultura política e a
qualificação do pessoal e optar pela saída do setor privado? Quando o
mundo inteiro está vendo os resultados das PPPs, especialmente dessa
modalidade que começou a ser introduzida na Bahia, com a construção do
próprio hospital e depois com a gestão de contrato de 25 ou 30 anos,
esse tipo conseguiu falir o sistema nacional de saúde inglês, que é um
marco mais importante da história da saúde no mundo.
FH: Você pode comentar mais sobre este modelo na Inglaterra?
Sônia: Lá não só existiu o modelo, como foi um desastre e faliu
o sistema. Porque se faz um contrato de 25 anos para a construção do
hospital e depois equipar e em seguida ter gestão do serviço. Não é essa
a modalidade de OSS, em que o governo investe, faz o serviço público e
entrega ao privado para gestão- modalidade comum em São Paulo e no Rio
de Janeiro. Tanto na Inglaterra como em Portugal isso hoje é considerado
o grande problema, pois se supunha que essa modalidade iria trazer mais
recursos para o setor público, seria mais eficiente e gastaria menos
recursos na área de saúde e, além disso, seria mais flexível, porque o
setor público é muito inflexível. Porém, o feitiço virou contra o
feiticeiro, porque agora, no meio da crise europeia, por exemplo, não há
flexibilidade para mudar esses contratos. Como cortar gastos de saúde
com um contrato que não pode ser rompido? Portanto, a aparente
flexibilidade se transformou em uma enorme inflexibilidade. Outra coisa é
que os acordos são feitos com uma estimativa de preços, isso em um
setor em que é muito difícil estabelecer valores por prazos tão longos,
pois é um dos que mais incorporam tecnologia. Então, há uma série de
inconvenientes nessa relação. Uma das coisas que levantei é que, se na
Europa, a PPP tem tido uma enorme lucratividade para os bancos que foram
os financiadores, no Brasil quem financia é um banco público, o BNDES.
Portanto, essa ideia de uma enorme injeção de recursos é um pouco falsa
em um País onde o próprio setor privado depende enormemente de
financiamento público.
FH: Então você é contrária ao modelo de integração
público-privada ou contrária a este modelo específico de PPP e favorável
a um modelo de OS, por exemplo?
Sônia: No Rio de Janeiro, o Superior Tribunal de Justiça
decidiu que se o governo resolver usar o modelo de OSS, os funcionários
serão de carreira (públicos). Então, independente de gestão ser ou não
terceirizada, o funcionário que atende à população não será o
terceirizado. Mas o que está acontecendo é uma terceirização geral não
só da função gerencial, mas também da atenção, que é precípua do setor
público. Essa suposta integração é uma ideia de que o setor público
virará simplesmente um contratador e o SUS será um financiador da área
privada. Isso deve ser muito bom para a área privada, que sempre viveu
no Brasil em torno de benefícios e subsídios do setor público. Desde sua
criação, incentivado fortemente durante o Regime Militar, o privado não
surgiu espontaneamente e, sim, por política pública, com financiamento e
contrato com setor público. Agora, este setor quer continuar se
beneficiando e quer que o SUS se transforme no verdadeiro comprador de
seu serviço.
FH: O SUS é inspirado em modelos europeus e tem como pano de
fundo o Estado de Bem Estar Social. Você citou a Inglaterra, que por
causa das PPPs e diante da crise econômica está falindo um sistema que é
tido como exemplo.
Sônia: Inclusive porque os hospitais privados de PPPs
terminaram com o custo de atenção maior do que os públicos. As
expectativas de que isso seria a solução saíram pela culatra.
FH: Na sua opinião, a participação da iniciativa privada é uma espécie de ameaça para esse modelo de universalização?
Sônia: Sempre existe a participação, mas a questão é saber se
esta participação está canalizando os recursos públicos para o setor
privado ou se ela traz o benefício para o bem estar público. Isso
depende muito do tipo de relação que se estabelece. Por exemplo, no
sistema público do Canadá, os médicos de consultórios são privados, mas,
desde que estejam subordinados a uma lógica que é pública, tudo bem. No
Brasil, o que se pensa em geral é o contrário, ou seja, é subordinar a
lógica pública à dinâmica do mercado privado. Por exemplo, é possível
ter PPPs na área de saúde com o desenvolvimento de medicamentos e
tecnologia, mas por que a atenção à saúde, que é prioridade da função do
Estado como bem estar público, deve ser atribuída a um contrato com
privado? Qual é a vantagem disso? Não há prova das vantagens para o bem
estar público.
FH: Mas a própria questão do sistema universal na Europa é
complicada, pois a população envelheceu e é preciso financiar saúde e
previdência para um contingente gigante e o Estado está quebrando por
conta da crise.
Sônia: O Estado está quebrando porque está financiando banco.
Se ao invés de financiar banco, financiasse saúde e previdência, não
teria problema. Os recursos foram desviados desde os Estados Unidos,
onde começa a crise, para salvar os bancos que especularam, sem controle
do Estado, na área de habitação, financiamentos habitacionais e o
subprime. O que aconteceu é que recurso público do Estado foi usado para
tampar os buracos dos bancos e isso também ocorreu na Europa. Portanto,
na verdade, não é o envelhecimento da população o problema, é a falta
de regulação do Estado sobre o capital financeiro, que hoje o domina.
Enquanto nós estivermos nessa situação, não haverá dinheiro para o bem
estar social. Agora, se o dinheiro usado para salvar os bancos e
resolver o sistema bancário no mundo fosse usado para o sistema de
saúde, não estaríamos com problema algum.
FH: Você é psicóloga de formação, o que te chamou atenção para escolher o caminho da medicina social e políticas públicas?
Sônia: Me formei psicóloga trabalhando com psicologia social.
Então, não era trabalhar com indivíduos e, sim, com grupos em
instituições. Desde essa época estou ligada à saúde, mais
especificamente, com representações sociais em saúde e doença. A ideia
da política no sistema de saúde sempre foi uma preocupação, portanto foi
uma trajetória natural buscar a compreensão maior da dimensão política e
sociológica.
Por Maria Carolina Buriti | Revista FH